Doris Miranda 12/05/2001
Uma delicada simbiose da alma luso-brasileira materializada. É como se apresenta Eugénia Melo e Castro.com, o disco que comemora os 20 anos de carreira da cantora portuguesa, que, como poucos, soube extrair o melhor da música brasileira para abrilhantar mais ainda o seu modo bem lusitano de encarar as artes. Esse caminho começou a ser percorrido em 1982, quando gravou A dança da lua em dueto com Ney Matogrosso para o CD Águas de todo o ano. Foi então que Eugénia sentiu que seria a música, ou em amplo aspecto, a poesia, sua principal via de acesso à nossa cultura. De lá para cá, cantou ou compôs com inúmeros artistas brasileiros, conciliando placidamente as diferenças de timbres, sotaques e concepção para enriquecer suas recriações da melhor música popular dos dois países. Manteve-se sempre como uma cantora portuguesa em essência, sem nunca deixar-se levar pela aparente facilidade de cantar com o acento brasileiro. "Fiz um juntado de uma vida inteira de trabalho e este é o resultado mais visível (e audível) de todas as idas e vindas que fiz entre Portugal e Brasil", diz Eugénia, em entrevista ao Folha, de sua casa em São Paulo, onde mora alguns meses do ano. O projecto, lançado simultaneamente com outro disco comemorativo (Ao vivo em São Paulo) reúne 16 duetos inter-atlânticos e uma versão personalíssima de Atirei o pau ao gato (assim mesmo, em português de Portugal). Ao lado de Eugénia estão Tom Jobim na bela Canta mais (uma das últimas gravações dele, feita em 1995, e única com um artista português), Caetano Veloso em Olhos castanhos e Coração imprevisto, Ney Matogrosso em A dança da lua, Luz do meu caminho e Foi Deus, e Milton Nascimento em O amor é cego e vê. Com Chico Buarque, seu ídolo maior, aquele a quem considera o compositor do século, ela canta Contrastes, uma música lírica de 1907, de Luiz Freitas Branco, um dos grandes autores lusitanos:
"Em tempos que lá já vão/Por minha causa choraste/Eu cheguei e pedi perdão/Tu sorriste e perdoaste".
Pode haver singeleza maior para exprimir o amor? Esse clima atinge o seu ápice em Quando a tua boca beijo, uma canção erótica portuguesa de 1920, composta por Mário Vasconcellos e Sá e com Gal Costa, parceira de Eugénia nesta faixa, é capaz de enlevar o mais tosco coração. A canção traduz perfeitamente o espírito romântico do trabalho, como há muito não se vê:
"Quando a tua boca beijo/E em teus braços me enleio/Sinto-me arder de desejo/Desvairado e violento/De me deixar devorar/Na fogueira do teu seio/Na chama do teu olhar/Da tua boca airosa/Onde há beijos a florir/Eu não sofro e a sorrir/ Vou fingir a minha dor/Boca linda, diz de novo/Delírio do meu amor/És a taça deliciosa/Onde acalmo o meu ardor".
Letras consistentes e uma desvinculação com o lado folclórico do fado são uma constante preocupação para esta portuguesa de raciocínio agudo e herança intelectual de pais escritores, que chegou nas terras ultramarinas brasileiras pela primeira vez aos dez anos. O contato com nossa música foi decisivo. Menina, como na capa do CD, ela vinha para acompanhar o trabalho dos pais e voltava abarrotada de discos. "A música brasileira é uma coisa revolucionária, o maior tributo que este país deu ao mundo".
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