
Multiartista inquieta e inventiva, a portuguesa Eugénia Melo e Castro tem projetado sua voz, composições e performances muito além das fronteiras de seu país. A começar pelo eixo monumental de sua obra, que abarca duas nações de laços históricos, idioma comum, apartadas por um oceano: Portugal e Brasil. Filha dos escritores Maria Alberta Menéres e Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro - nas artes, E. M de Melo e Castro (Poeta pioneiro do Concretismo em Portugal) ela nasceu em Covilhã, Serra da Estrela, e trilhou um caminho peculiar até decidir-se pela música como principal meio de expressão artística.
Após aprender piano, canto e artes gráficas em Lisboa, estudou cinema e fotografia na London Film School (chegou a fotografar profissionalmente, em Lisboa, o prêmio Nobel de literatura colombiano Gabriel Garcia Marques).
Em 1977, criou e atuou no grupo de teatro Ânima, que abordava poesia experimental concreta, sonora e visual encenada. No mesmo ano, e no seguinte, integrou outro grupo teatral, A Barraca, onde trabalhou, entre outros, com o diretor brasileiro Augusto Boal (do Teatro do Oprimido), Mário Viegas, Maria do Céu Guerra e Julio Pereira.
Ainda em 1978, estreou como atriz de cinema, no primeiro filme de Joaquim Leitão, “Pra frentex”, e em “Três corvos negros”, ao lado de Luís Lucas, produzido para a RTP (Rádio e Televisão de Portugal), na série Contos Tradicionais Portugueses.
Até 1985, compôs, interpretou e produziu musicalmente oito bandas sonoras de filmes de animação da série “Ouriço cacheiro” para a RTP, no âmbito do intercâmbio de filmes de animação para a UER (União Européia de Radiotelevisão).
Também na RTP, em 1980, apresentou uma série de 24 programas semanais de TV, “Quadrados e quadradinhos”, em que aliou as funções de produtora musical, cantora e compositora, acompanhada pelos, a convite dela, iniciantes do grupo Trovante.
Mas o batismo de fogo de sua voz límpida, translúcida e cortante, além da caligrafia autoral multifária, ocorreu em 1981. Neste ano, ela cruzou o Atlântico e foi ao Brasil convidar o pianista e maestro Wagner Tiso, o pilar instrumental do movimento musical mineiro Clube da Esquina, para assinar direção e arranjos de seu disco de estréia, “TERRA DE MEL”. “Escolhi o Wagner porque ele era o mestre e maestro do som que eu ouvia nos discos do Milton Nascimento. Fui descobrindo o arranjador por trás das músicas e isso para mim era fundamental. O ambiente sonoro, os arranjos, os instrumentos escolhidos, o bom gosto e a ousadia. Eu ouvia os discos sempre acompanhada das leituras das fichas técnicas, conhecia os músicos como se fossem meus amigos”. Mas, porque essa opção inicial, por pavimentar uma ponte direta com a cultura brasileira? Ela responde:
- Desde 1976, eu estava ligada e participava da cena musical e cultural que se fazia em Portugal, fui aprendendo com os compositores novos. Mas, eu sonhava um dia poder cantar, gravar e compor com os músicos que eu ouvia, que me chegavam do Brasil. Para mim era tudo natural, música e poesia e a língua portuguesa era um elo super importante, cantada de uma forma melódica e super bem encaixada nas melodias, métricas e sons perfeitos. Isso era algo encantatório, a língua portuguesa fluía mais docemente. O motivo era fazer algo com música e com a vida, ser isso, cantora, compositora, viver intensamente essa idéia”.
1982 - É lançado o primeiro disco. Eugénia não perdeu tempo. “TERRA DE MEL, considerado neste ano, o melhor disco editado em Portugal, e ela a melhor cantora portuguesa, entre oito faixas, trazia seis de sua própria lavra. Gravado e misturado no Angel Studio, de Lisboa, entre os meses de julho e outubro, ele surpreende pela predominância de parcerias suas com o compositor gaúcho Kleiton Ramil. “Ele apareceu na minha casa levado pela minha mãe, que o viu aflito e sozinho na rua, na porta da RTP. E caiu numa espécie de caldeirão artístico do que se vivia e fazia em Lisboa. A minha casa era um pólo de artistas, atores, músicos escritores, pintores, onde ele ficou cerca de um mês. Deixou-me umas quatro ou cinco músicas gravadas em violão, em K7, e fui fazendo as letras”. No disco, entraram da etérea “Diferença horária” (“pensas no tempo/ que vai levar/ primeiro o corpo/ depois o estar”) à em “Em milímetros” e “É assim”. Também entra no disco o clássico nativista “Vira virou”, composto apenas por Kleiton. “Ele a fez na minha cozinha, em casa”. No Brasil, Kleiton teria uma bem sucedida carreira em dupla com o irmão Kledir, autor da música reflexiva e faixa título Terra de Mel (“Dás-me os olhos para ver/ o que está na minha mão/ ela está entre o que eu sei/ e antes do ainda não) com letra de Eugénia, pincelada pelo acordeon de Wagner. Kledir participa também do disco ao violão Ovation e percussões. De Kleiton sozinho, também, é o “Beco do Tiso”, instrumental que homenageia o maestro do disco, e traz Eugénia em vocalise. “Resolvi abrir o disco com essa música para deixar bem claro que eu não seguiria os caminhos lógicos das carreiras das cantoras padrão. Não recorri conscientemente a nenhuma influência, os vocais vieram naturalmente com a própria música”. O carioca Yório Gonçalves, que tinha trabalhado com o afamado compositor português Zeca Afonso (do hino político “Grandola, Vila Morena”) é o parceiro de Eugénia em duas outras músicas do disco, “Cais” e “Começo de mar”. “Ele é um músico sensacional, brilhante, até hoje tenho músicas dele para colocar letras. Agora vive na Alemanha”. E adiciona:
“A repercussão do disco em Portugal foi fantástica, era um som novo, meio mix de Portugal e Brasil, eu tinha 22 anos, tudo muito no começo, e com a autenticidade do que se faz com uma energia enorme e cheia de força. Foi um grande encontro entre músicos portugueses e brasileiros, talvez o primeiro assim em estúdio em Lisboa. Nessa época, não se falava em renovação do fado, que ainda estava numa espécie de limbo para mim e para a minha geração. O que estava se renovando era a MPP, Música Popular Portuguesa, cada um procurando seu lugar. O fado é uma canção de Lisboa e/ ou de Coimbra. A música popular portuguesa urbana e nacional é outro assunto”.
Em 1983, viria “ÁGUAS DE TODO O ANO “Foi todo composto durante o lançamento do ‘Terra de mel’, no Brasil. Tive de convencer a então Polygram a gravar nos estúdios da Barra da Tijuca, no Rio, e o Wagner fez os arranjos. Fui compondo ao sabor dos amigos que chegavam e queriam participar”. Repleto de ases instrumentais brasileiros (de Chiquinho do Acordeon a Ricardo Silveira, Mauro Senise, Paulinho Braga, Ohana, Luis Alves, Robertinho Silva), ele traz novas parcerias da cantautora com Kleiton Ramil (“Lugar sem fim”) e Yório (“Fora da terra”). E mais, uma estréia, com o mineiro Tunai, irmão de João Bosco (“Ao cair da tarde”), que toca na faixa, e outra com o amazonense Vinícius Cantuária (“Duas cidades”), igualmente convidado instrumental.
Há uma regravação do majestoso clássico do Clube da esquina “Um gosto de sol”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Do letrista, com outro ilustre músico mineiro, Túlio Mourão, é a angulosa “A dança da lua”, em que Eugénia terça vozes com Ney Matogrosso. “Eu o conheci no Rio. E quando o Ronaldo disse que estava a fazer a letra para mostrar ao Ney Matogrosso, aí, eu me adiantei e disse, essa é minha. E fui convidá-lo. Foi o primeiro dueto luso brasileiro gravado, e eu resolvi dividir em frases que se alternavam, para tentar imaginar uma só voz, uma só língua portuguesa, em nossas duas vozes”. Cintila ainda no disco “Meu e assim” (“debaixo do céu há uma casa/ de cima do céu há uma asa/ no meio do seu corpo eu sei”), parceria de Eugénia com Caetano Veloso, a quem conheceu em Lisboa no show dele, “Outras palavras”. “Ficamos bem amigos. Sua música foi a última a chegar ao estúdio, quando já estávamos quase em mixagens”. O disco foi distinguido com os
2 prêmios Se7e de Ouro- melhor disco e melhor cantora 1983. foto e arte final da capa - Cafi.
Cada vez mais fluente na estética binacional que edificou, ela desembarcou em seu
"EUGÉNIA MELO E CASTRO III " em 1986, sob produção do experiente Guto Graça Melo. “Sempre controlo o meu repertório a 100%. As escolhas são minhas, sempre, até hoje. Mas ouço sugestões, claro, ouço muitas coisas. Mas como também gosto de compor, tento equilibrar. O Guto fez a produção e escolhemos juntos os músicos, o conceito, foi uma maravilha gravar esse disco. Era a primeira vez com orquestra em estúdio, enfim foi sensacional”. Nove violinos, três violas e três cellos colorem a intensa “Magicamente” (“o coração tem tempo/ atrasa um pouco num momento/ e se adianta ao sentimento”), que tem arranjo de base do violonista/guitarrista Toninho Horta, parceiro autoral de Eugénia na música. “Eu fui conhecendo cada vez mais compositores, é natural, circulávamos todos nos mesmos meios, e isso facilitou as parcerias”. Como a do samba cadenciado letárgico, “Cobra aranha” (“suspensa por uma corda/ silenciosa/ enrolo a luz do meu olhar/devagar”), com Francis Hime, sob arranjos, regência e teclados de Gilson Peranzetta. Também há parcerias de Eugénia com Yório (“Velho mar”), John Lucien (“A cor do ar”) e uma releitura de “Meu e assim”, dela com Caetano, com participação da guitarra do lendário ás do soul brasileiro, Robson Jorge. Há espaço no disco ainda para uma composição de José “Zeca” Afonso (“Que amor não me engana”) com arranjo e participação de Tulio Mourão no piano, e o mítico poeta luso Fernando Pessoa, musicado por Milton Nascimento, em “Vaga no azul”: “Não sei o que é, nem consinto/ a alma que o saiba bem/ visto da dor com que minto/ dor que minha alma tem”. Capa de Valéria Costa Pinto e foto de J R Duran.
A aliança com Caetano Veloso solidifica-se ainda mais no disco “CORAÇÃO IMPREVISTO" (1988). A enevoada faixa título é mais uma parceria dele com a cantora, com quem dueta ao sabor do lirismo refratário da letra: “dentro de mim quase existo/ quase tudo/ quase aquilo/ quase isso/ oposta desde o início”. “Eu mandei a letra para o Caetano, aliás, mandei duas e ele escolheu esta. No dueto, tentamos ser o mais suaves possíveis, a música é difícil, a letra também não é fácil. Fomos ao encontro de nossas interpretações de uma forma muito parecida”. E rememora: “Este disco começou a ser gravado em Lisboa e terminou no Rio. Andei com as fitas às costas, literalmente, e eram pesadas. Mas deu certo. Previa apenas piano e voz - com Wagner Tiso. Mas teve como convidados Zeca Assumpção, contrabaixo, na música com Caetano, Carlos Zíngaro, violonista português, em ‘Longe’ (Ronaldo Bastos/ Danilo Caymmi) e Pedro Caldeira Cabral, guitarra portuguesa em ‘Os argonautas’”. Além da releitura deste icônico fado de Caetano (do refrão, “navegar é preciso/ viver não é preciso”), o roteiro ainda traz mais uma densa parceria da cantora com Toninho Horta (“Fogo de palha”, como sugere o título, “feita de uma assentada só”), outra com Guto Graça Mello (“Princípio e fim”, música dele, que ela letrou, “numa única noite, em modo directo”) e a rara de Milton Nascimento e Wagner Tiso “Talvez em teus olhos”.
Apimenta o repertório, a lusitana “Maldita cocaína”, de Cruz e Souza e Almeida Amaral (“hoje não posso deixar/ esse pó de maldição/ vivo da sua ilusão/ acordada e a sonhar”), puxada para o tango, no acordeon de Wagner Tiso. “É uma música que se canta em Portugal desde os anos 1920, quando foi feita, e pertencia a uma peça de revista. Eu a incluí porque adorava o clima da música e era inesperada sua inclusão num disco meu. Sempre a cantei nas rodas de música de Lisboa”.Capa de Valéria Costa Pinto e foto de Miguel Rio Branco.
Em 1989, saiu a primeira coletânea da obra de Eugénia, “CANÇÕES E MOMENTOS”, algo que o mercado só concede a grandes vendedores de discos. “Foi idéia da gravadora, eu jamais faria uma coletânea a essa altura da vida. Por isso, exigi que tivesse alguns temas originais”. Foram incluídas uma inédita versão ao vivo da faixa título, de Milton Nascimento e Fernando Brant, outra da inaugural “Terra de mel” (parceria dela com Kledir ) e ainda uma releitura de “Todo sentimento” (Cristóvão Bastos/ Chico Buarque). Todas contam com o solitário acompanhamento do pianista, registradas no especial “Eugénia Melo e Castro convida Wagner Tiso”, da emissora lusa TV 7 Colinas.
No ano seguinte,1990, uma superprodução de impacto, “O amor é cego e vê – canções portuguesas” atesta a vitalidade desafiadora da solista, já a partir da capa. Em pose recostada estilo maja desnuda, linda foto de Miguel Rio Branco, Eugénia está sem roupas, mas assexuada. “Com a arte de Valéria Costa Pinto a minha idéia foi usar a novíssima técnica de computador para ‘ausentar o corpo’. A máquina chamava-se Sigmagraf, ninguém tinha, foi uma super produção”. O termo abrange também a parte musical, com arranjos e direção musical de Wagner Tiso e Eugénia. Trata-se de uma tour de force por diversas fases e estilos da canção portuguesa, com estelares convidados brasileiros, entre cantores e instrumentistas, e os luminares lusos Carlos Zíngaro (violino) e Mario Laginha (piano). “Foi tudo bem complicado, muitos convidados, estéticas e épocas diferentes, gravado em Portugal e terminado no Brasil. Esse disco não foi pacífico...mas vale muito pra mim, pois foi a primeira vez que grandes cantores brasileiros cantaram músicas portuguesas, algumas mais conhecidas, outras completamente anônimas”. Em especial, “Contrastes” (Luiz de Freitas Branco), lançada por Corina Freire, em 1907, onde Eugénia dueta com Chico Buarque. “É uma canção lírica jamais autorizada a ser cantada sem ser pelo mundo lírico. E eu consegui essa autorização. Foi um disco bem difícil de produzir”. Simone é a convidada de “Caminho errado” (João Nobre), emoldurada pelo flugelhorn de Marcio Montarroyos, gravada por Luiz Piçarra, em 1950. Popularíssima no Brasil, na voz da fadista mitológica Amália Rodrigues, a partir de 1958, “Foi Deus” (Alberto Janes) reúne, mais uma vez, Eugénia e Ney Matogrosso, lânguidos e afiados.
Gal Costa, o cello de Jaques Morelenbaum e Eugénia revisitam “Quando a tua boca beijo” (Mario de Vasconcellos e Sá), sensualidades que Nina Barreira desvelou em 1920. Durante anos, um dos principais representantes do sotaque musical português no Brasil, o cantor Francisco José emplacou, em 1960, “Olhos castanhos” (Alves Coelho Filho), recriado no disco em dueto da solista com Caetano Veloso. “Ele nem precisou de letra, sabia tudo de cor”. Já para a faixa título, “Amor é cego e vê” (Matos Sequeira/ Pereira Coelho/ Amândio Rodrigues/ Afonso Correia Leite), “que pedia uma interpretação magistral”, ela escalou Milton Nascimento. “Enfim, fui compondo o puzzle. Foi um enorme sucesso de vendas, e algumas críticas pela primeira vez muito duras. Era um projeto ambicioso, incomodei bastante...”.
O álbum seguinte, 1994, o duplo “LISBOA DENTRO DE MIM- O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL" resultou de um projeto ainda mais ambicioso. “Foi totalmente produzido por mim, gravamos na capital portuguesa com arranjos do Wagner. Foi feito para a ‘Lisboa capital da cultura 1994’, mas levei um ‘golpe’ do Governo e da Cultura. Eles desentenderam-se, entre o Comissariado do Ano de Lisboa Capital da Cultura 94, e o Secretário do Governo (não tínhamos Ministro da Cultura). Eram de partidos diferentes, e eu não era, nem nunca fui de nenhum partido. Fui chamada para elaborar uma homenagem e fiquei no meio da guerra deles, a ver navios, literalmente. Mas como já tinha gravado e estava lindo, licenciei para a BMG, saiu, e foi um enorme sucesso. No show no CCB, em Lisboa, coloquei pela primeira vez três pianos Steinway no palco, para o Wagner Tiso, o Antonio Pinho Vargas e o Mario Laginha tocarem juntos. Foi deslumbrante”.
O repertório entrelaça, com ainda maior profundidade, as nascentes das músicas lusitana e brasileira. “Procurei assuntos e temas que tivessem em algum momento a ver com Lisboa, com o imaginário de Portugal, com a poética misteriosa e fantasiosa dos portugueses em relação à Lisboa”. Exibindo suas multifaces entre o drama e a carícia, a voz de Eugénia viaja do “Soneto” (“Que dias há que n’alma me tem posto/ um não sei quê, que nasce não sei onde/ vem não sei como, e dói não sei porque”), do primal vate Luis Vaz de Camões (1524-1580), musicado por Wagner Tiso, ao mito sebastianista “Ulisses”, poema de Fernando Pessoa (1888-1935), musicado por Mario Laginha: “Este que por aqui aportou/ foi por não ser existindo/ sem existir nos bastou/ por não ter vindo foi vindo/ e nos criou”. O avô da cantora, Ernesto Melo e Castro, emparceirado com Anrique Paço D’Arcos, desvela a “Canção do encoberto”: “Dom Sebastião de mim próprio/ a mim próprio ando a guardar/ e em manhã de nevoeiro/ a mim próprio hei-de voltar”. Um poema de seu pai, E.M. de Melo e Castro, “Um homem que canta e vê” (“um homem que se vê/ cantando/ no meio do sonho”) foi musicado igualmente por Mario Laginha, autor do arranjo, que executa num trio de pianos com Wagner e Antonio Pinho Vargas. A este, por sua vez, coube musicar “O sentimento dum ocidental”, do poeta Cesário Verde (1855-1886): “Nas nossas ruas, ao anoitecer/ há tal soturnidade, há tal melancolia/ que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ despertam-me um desejo absurdo de sofrer”.
No caudaloso delta estético do disco navegam ainda o seminal modinheiro Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), da “Viola de Lereno”, considerado um dos pais da canção brasileira, em “Saudades no Tejo”, encordoado pela guitarra portuguesa de Pedro Caldeira Cabral, e o patriarca erudito popular carioca Heitor Villa Lobos (1887-1959), de “Modinha”, lancetada pelo violino luso de Carlos Zíngaro. “Acho as modinhas filhas dos mesmos pais e mesmas mães, em Portugal e no Brasil”, define Eugénia. Ela é co-autora de outro tema crucial do disco, “O cerco”, com Wagner Tiso, com introdução incidental de “Lisboa antiga”, de Amadeu do Vale. De Eugénia ainda, com Frederico Valério, é a ode do título,“Lisboa dentro de mim”, que sintetiza o primeiro CD do duplo: “Sente o que eu sinto e invento/ dentro de nós somos sons/ de sonhos em movimento”. No segundo disco, “Lisboa fora de mim – O acidente dum sentimental”, a atmosfera muda. São apenas três faixas, onde os músicos Wagner Tiso (piano), Nico Assumpção e Yuri Daniel (contrabaixos) e Marcio Montarroyos (trumpete e flugelhorn) soltam amarras, num ambiente de improvisos, de tônus jazzístico. Ele acolhe uma releitura mais dramatizada de “Maldita cocaína” (Cruz e Souza/ Almeida Amaral, da revista “Charivari”, de 1929), a flutuante “Não sei dançar” (Alvin L.), lançada no Brasil pela pop roqueira Marina Lima, e o langoroso standard de Cole Porter, “The laziest girl in town”, com uma intromissão incidental do fado “Foi Deus”. “Tudo são desafios e momentos de experimentar estéticas”, sanciona Eugénia.
Aparentemente, um projeto cartesiano como “EUGÉNIA MELO E CASTRO CANTA VINÍCIUS DE MORAES”, de 1994, não seria um destes momentos. Mas, só aparentemente. Muitos meandros permearam o percurso até o arremate final, como conta a solista:
- “Eu estava com idéias de gravar um disco só com poemas de Fernando Pessoa, musicados por compositores brasileiros. Dei ‘Emissário de um rei desconhecido’ para o Milton Nascimento musicar. Nessa altura, apareceu misteriosamente um projeto igual e aconteceu o disco ‘Música em Pessoa’, onde eu cantei essa música, uma vez que tinha sido eu a pedi-la ao Milton. Era um projeto meu, que foi engolido – mas andei em frente e criei outro, que seria gravar Vinícius de Moraes. O dono da Som Livre, João Araujo, queria entrar com a gravadora Som Livre (da TV Globo) em Portugal. Queria um disco de artista português, mas que tivesse também o cunho brasileiro, e tudo se conjugou”.
Também, a princípio. Na verdade, a idéia de Eugénia era “procurar na obra de Vinicius sua face mais erudita – e foi somente esse o ponto”. Tal detalhe foi “escondido” pela cantora, que entrou no estúdio da gravadora no Rio, com Wagner. “Fiz mistério sobre o repertório”. Resultado: “Quando João ouviu, ficou preocupado, pois nunca imaginou que eu tivesse evitado a obra mais bossa de Vinicius”. Nem um único samba, do autor que se intitulava o branco mais preto do Brasil. Mas era essa a idéia: “Ele escreveu esses poemas que eu cantei, pensando nas conjugações mais próximas do português que se fala em Portugal, por isso as escolhi. Não me sinto bem a cantar expressões totalmente do português do Brasil. Questão minha, não sinto que soem bem na minha interpretação”. O poeta carioca castiço aparece em sua face mais camerística, nos temas candentes de autoria solitária, “Serenata do adeus”, “Valsa de Eurídice”, “Medo de amar”, parcerias com Tom Jobim, como “Soneto da separação”, “O que tinha de ser”, “Por toda a minha vida”, “Derradeira primavera”, “Modinha”, “Chora coração”, “Eu sei que vou te amar”, “Canção do amor demais”, com Edu Lobo (“Canção do amanhecer”) e até com o erudito Claudio Santoro, “Amor e lágrimas”. Da aliança de Vinicius com Baden Powell, nenhum dos afro sambas, mas a desconhecida “Canção do amor ausente”, com participação do tenor erudito Eduardo Álvares. Nos alicerces instrumentais de tal argamassa clássica, os grupos Cello Ensemble e o Quinteto Villa Lobos, além do multinstrumentista Egberto Gismonti. “Fui eu quem o chamei. Pedi arranjos de orquestra de câmera e, claro, Egberto mandou tudo em teclados, só para contrariar, hehehe... Foi dificílimo acertar as entradas, mas adorei. Se eu tivesse pedido
sintetizadores, ele teria mandado em camerata, cordas, clássico”, ironiza.
Cereja do bolo à parte é a luxuosa e acidental participação de Tom Jobim em mais uma de suas parcerias com Vinicius, “Canta, canta mais”. Relata Eugénia:
- “Foi uma surpresa. Estávamos a gravar o meu disco no piano dele, ainda estacionado no estúdio da Som Livre – ele tinha terminado a gravação do que seria seu último disco, e o instrumento ainda estava lá. Um dia, o Chico Buarque ligou-me a pedir uma tarde de estúdio para gravar o ‘Choro bandido’, com o Tom, para o songbook do Edu Lobo e, claro, que eu disse sim. No dia seguinte, quando chegou, o Tom me perguntou o que eu estava a gravar. Eu ri: um monte de músicas tuas, em homenagem a Vinicius. Ele perguntou se ainda havia alguma a gravar, e pediu ao filho Paulinho para tirar o meu tom. Gravamos na manhã seguinte. Foi sensacional. Piano e voz, no final de agosto de 1994. Foi provavelmente sua última gravação”.Capa de António Campos Rosado e foto de Luis Magone.
De novembro de 1995, “EUGÉNIA MELO E CASTRO AO VIVO NO SESC POMPÉIA”, revisa parte do repertório da homenagem a Vinicius (“Canção do amor demais”, “Valsa de Eurídice”, “O que tinha de ser”, “Modinha”, Derradeira primavera”, “Por toda a minha vida”) ressignificada pela vibração da audiência.
A cantora trocou de sede brasileira. “Nos anos 90, mudei meu pouso no Brasil, do Rio para São Paulo. Eu já freqüentava muito o ambiente musical paulista. Para mim foi apenas simplificar a vida, pois vivia na ponte aérea entre as duas cidades. Uma transição natural, porque já tinha sido convidada para vários shows em SP. Daí, o transportar e continuar a cantar as músicas que já cantava, com novos arranjos, novos músicos, novas possibilidades e também novos temas, novos parceiros”. Luminar do instrumental paulistano, Nelson Ayres é o diretor musical e pianista do disco, Paulo Bellinati comparece com o violão virtuoso, e o baixista convidado é Itamar Collaço, que integraria o icônico Zimbo Trio.
O trajeto musical abarca fados d’álém e d’aquém mar: “Argonautas”, de Caetano, “Fado da sugestão” (Felisberto Ferreirinha), “Fado tropical” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), aqui com a participação da atriz Mika Lins, e o tradicional “Fado Lisboa” (Raul Ferrão/ Álvaro leal), de 1934, que ela já havia visitado no disco “Lisboa dentro de mim”. “Esse roteiro foi desenhado em função da escolha do repertório. Nessa altura, abordar um tema mais próximo do ambiente do fado já não era para mim um susto. Eu estava bem mais aberta a entender e brincar com algumas referências mais portuguesas. Uma questão de evolução e amadurecimento”. Tanto que o show traz ainda uma releitura satírica do acendrado hit (inclusive no Brasil) do fado, “Perseguição”, de Avelino de Sousa e Carlos da Maia. A personagem vitimada e perseguida torna-se perseguidora: “se de mim nada consegues/ é porque não me persegues/ constantemente na rua/ sabes bem que eu sou casada/ isso não quer dizer nada/ eu só penso em ser tua”. Também a reeditada “Maldita cocaína” lusitana, vem agora acompanhada por “A cocaina” (1927), de J.B. da Silva, o carioca Sinhô, o pioneiro rei do samba, transportado para o ambiente do tango. Cenário de Guto Lacaz. Produção do show e foto da capa Claudio Kahns. Produção musical de Nelson Ayres.
Em 1996, Eugénia voltou ao cinema, no duplo papel de atriz e cantora em “Bocage, o triunfo do amor”, do cineasta Djalma Limonge Batista.
- “Neste filme interpretei a Liberdade. Cantei esse poema ‘Liberdade’, de Bocage, com música de Lívio Tragtemberg. Esta canção não está presente em nenhum disco. O filme fez o circuito internacional de festivais de cinema, em Cuba, Berlim, Portugal, Brasil, e o Sundance Film Festival, de Utah, EUA, onde foi premiado com a melhor direção artística”.
Em 1998, Eugénia surpreende uma vez mais com “RECOMEÇO”, que seria, na verdade, o espantoso título de seu disco de estréia. “Trata-se da demo que fiz em Lisboa, com alguns músicos portugueses, em estúdio, violão e voz, uma musica tinha piano. Foi antes de ir ao Brasil, em janeiro de 81, convidar o Wagner Tiso para vir gravar comigo”. Informa a ficha técnica: “Maquete gravada em Lisboa, nos estúdios Musicorde, entre os anos de 1977 e 1979, com produção musical e escolha de repertório de Julio Pereira (arranjos à viola) e participação “à viola” de Jaime Queimado. Ela avaliza a audácia:“Achei interessante lançar, porque afinal, eu tinha gravado um disco sem saber. Algumas músicas nem chegaram a entrar em ‘Terra de mel’ e achei tão bem gravado, muito simples e sincero, resolvi lançar”. Algumas faixas entraram no primeiro disco oficial, como “Cais”, “É assim”, “Diferença horária”, “Vira virou”, “Em milímetros” e outras ficariam para sempre inéditas (“Águas são águas”, “Deste lado”, “Já sei...não sei”, “O outono e o fim”) não fosse este disco.
No mesmo ano, ela idealizou, criou e produziu o programa de televisão “PROGRAMA ATLÂNTICO”, realizado em Lisboa, durante o verão de 1998, e transmitido a partir de março de 1999, em Portugal, pela RTP1 e, no Brasil, através da TV Cultura, em 2000. A ideia foi alargar a sua experiência pessoal a outros artistas de ambos os países. Reuniu durante 14 semanas, cada programa de 50 minutos, duplas de cantores e compositores dos dois países, em duetos inéditos e a solo. Idealizado e apresentado por Eugénia, “Atlântico” contou com a co-apresentação de Nelson Motta como convidado, em todas as edições. Ganhou, em Portugal, o “melhor programa”, em 1999, e é considerado um dos melhores programas de TV em Portugal, desde sempre.
Foi também neste ano, que o produtor carioca Almir Chediak convidou Eugénia para participar do portentoso songbook da obra de Chico Buarque, o maior da série, com oito discos, totalizando 118 gravações. Ao lado de expressivos astros da MPB das mais diversas constelações, como Edu Lobo, Djavan, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Cauby Peixoto, Elza Soares, Caetano Veloso, Beth Carvalho, João Bosco, Zeca Pagodinho, Lenine, Gal Costa, Dominguinhos e Johnny Alf, à Eugénia coube “Tanto mar”, uma evocação do compositor à Revolução dos Cravos, que marcou o fim da ditadura lusa, em 1974. Na primeira versão, a música de Chico Buarque chegou a ser censurada no Brasil pela ditadura militar local, mas a segunda, de 1978, já à beira da anistia brasileira, passou. Ela não trazia mais a euforia comemorativa da primeira letra, já que a situação se modificara em Portugal: “Foi bonita a festa, pá/ fiquei contente/ e ainda guardo renitente/ um velho cravo para mim”. “Foi esta que o Chediak escolheu. Chamei o Wagner Tiso para fazermos um piano e voz, numa intenção já pensada, condizente com certa tristeza e desilusão”, admite ela. “A idéia era mais uma vez conjugar a sonoridade de uma voz portuguesa com a profundidade da letra, numa versão musical intimista, mas sem ser dramática”.
Mais um álbum registrado ao vivo no SESC Pompéia, em junho de 2000, “MOTOR DA LUZ” (faixa título de Caetano Veloso) ostenta a cantora na plenitude de seus domínios vocais e interpretativos. “Ele foi idealizado para ser com uma Camerata que o Wagner Tiso formou para a gravação. Tivemos muito poucos ensaios e isso facilitou os improvisos: era tudo ou nada”. Promove pungentes incorporações de “Meia noite” (Edu Lobo/ Chico Buarque), “Longe” (Danilo Caymmi/ Ronaldo Bastos) e “Retrato em branco e preto” (Tom Jobim/ Chico Buarque), com fragmentos de “Gota d’água” (também de Chico) e “Coração vagabundo” (outra de Caetano). E mais, o raríssimo vanguardista precursor Valzinho (“Viver sem ninguém”, de 1950), prova do mergulho cada vez mais profundo de Eugénia na garimpagem de pérolas da música popular. “O repertório foi todo elaborado por mim. Fui imaginando algumas músicas ligadas com outras. Sempre me fascinou a idéia de interligar universos, datas, épocas estilos”. Como ocorre ainda na acoplagem conceitual da candente “Lição de astronomia” (“choverão estrelas, enfim/ estrelas de ti/ sobre mim”) de Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso, de 1992, com “Estrelas” (1994) do ex- Titãs, Arnaldo Antunes, e “Estrela pequenina” (1933), do ancestral autor para-folclórico brasileiro Hekel Tavares.
Também da fase antecessora da MPB modernista é o Custódio Mesquita (“Espera coração”, 1940), em sincronia com o luso “Quando a tua boca beijo” (Mario de Vasconcelos e Sá, 1920), e o americano Cole Porter, numa avassaladora imersão em “Laziest girl in town” (1927), por quase sete minutos. “Bem que se quis” não abre o disco por ter sido o cartão de visitas para o debute arrasador da carioca Marisa Monte. Bem ao contrário. “Descobri essa música, ‘E po’ che fa’, do compositor italiano Pino Danielle, e pedi ao Nelson Motta que fizesse uma versão. Mas eu demorei para gravar e ele pediu para dar a uma cantora nova que ele iria lançar”. Antes de mais uma traquinagem de Eugénia - uma versão dramatizada da cantiga de roda “Atirei o pau ao gato” - o roteiro encerra na adequadamente intitulada “Surpresas”, mais uma inesperada parceria da cantora. “Conheci o Gonzaguinha, em 1985, no Rio, e ele foi várias vezes a Lisboa, cantar e fazer shows. Em 1987, ficou quinze dias de férias, era verão, fazíamos passeios, mostrei-lhe várias letras minhas e ele adorou ‘Surpresas’. Fez a música e cantou para um gravador em pleno Castelo São Jorge, com os barulhos da cidade e um eléctrico a fazer tlim tlim, gente a rir. Gravei essa música já depois da morte do Gonzaguinha. Fizemos um trabalho de edição nessa K7, o Wagner Tiso tocou piano atrás da voz dele. Foi o dueto possível, porque tínhamos combinado gravar juntos”, lamenta.
“Nos sentimentos mais profundos moram as zonas invisíveis. Entre distâncias possíveis e impossíveis. Em cada coisa ou lugar elas estão lá, à espera de serem notadas”. Quem assina este texto, que se desdobra no encarte de “PAZ”, gravado no Estúdio Anonimato, em São Paulo, entre julho e agosto de 2002, é Eugénia MC. Quase uma personagem, desenhada na capa do disco, pela artista plástica e escultora Fernanda Fragateiro e fotografada na parte interna com a cabeleira em riste e calçados de Bob Esponja, ela explica a nova transformação:
- “Cansei-me um pouco do meu lado intérprete ‘séria’. E encontrei no Eduardo Queiroz uma porta para um disco autoral com outras possibilidades, fases novas da vida. Enfim, achei graça também de poder abreviar o meu nome. Tinha os MCs atacando na época, mas essa não foi uma boa idéia, vejo isso bem agora, anos depois”. Queiroz responsabilizou-se pela produção musical e arranjos, além de samplers, teclados, programação, violão, guitarras e baixo, neste mergulho da cantora numa atmosfera mais eletrônica. “Foi uma mudança boa, acho que tudo o que muda mais ainda é dentro de mim, na minha cabeça. A rapidez dos tempos não permite grandes análises a estas mudanças internas. Acabam sendo mudanças que dão pé a outras. Um caminho que se desenha natural no meio de muitas vontades diferentes de experimentar coisas novas”. Com exceção de uma regravação de “Velho mar” (parceria com Yório Gonçalves), o disco só traz inéditas autorais da cantora. Em muitos casos, além da letra, ela assina também a parceria musical, na maioria das faixas com Eduardo Queiroz. Como “Paz” (“não estou em lugar algum/ que se possa descrever/ do silêncio sobra o resto/ que o barulho ensurdecer”), “Ausência” (“não sinto a tua vinda ao meu encontro/ não estou onde estarias se assim fosse”) e “Imagem” (“penso nisso de sentir/ o que, afinal, não se sente/ não se sabe/ não se entende”). “Tem três músicas que eu considero sensacionais, ‘Paz’, ‘Ausência’ e ‘Imagem’. Só isso já me deixa muito feliz nesse disco”, sumariza.
Capturado “ao vivo”, no supra citado estúdio Anonimato, de São Paulo, entre maio e outubro de 2004,
"DANÇA DA LUZ ” é mais uma parceria coesa de Eugénia (direção artística e seleção de repertório) e Eduardo Queiroz (violão, guitarra, teclados), que divide com ela a produção, e nada menos de nove temas autorais. “Nós rodamos muito esse repertório do CD ‘paz’, e como fizemos algumas alterações – o que sempre acontece quando se faz muitos shows – resolvemos regravar algumas músicas”. Entre outras, lá estão “Reza nocturna”, “Paris 88”, “Zona invisível”, “Linha da vida”, “Infinito”. A elas, foram acrescentadas as parcerias de Eugénia & Queiroz, “Dança da luz”, “J’attends”, “Cést la vie”; dela com o baixista da gravação, Renato Consorte, “Onde/ Aos antepassados” e de Queiroz com a filha da cantora, Mariana Melo, “Continuamente”; além de “Nothing really ends” (Tom Barman), do grupo belga dEUS .
Em seguida, 2006, mais uma audácia estética de grande porte: no álbum duplo “DESCONSTRUÇÃO”, Eugénia aborda, com intensidade e nenhuma vassalagem, um compositor a que atribui “toda a importância do mundo” em sua lírica pessoal. “A obra de Chico Buarque é para mim um alívio, uma cura para uma doença grave. Um impulso para estar viva e acreditar no valor individual. Eu escolhi o Chico Buarque autor total, de música e letra, sem parceiros. Ele achou boa a idéia, inclusive, porque a nossa proposta era alterar harmonias e isso ele poderia autorizar, sem termos que incomodar outros parceiros. Deu-nos muita liberdade”. Também sob direção musical e arranjos de Eduardo Queiroz, o disco foi gravado no estúdio Anonimato, em São Paulo, entre maio e junho de 2004. “O Eduardo é um compositor e arranjador que trabalha muito com música para cinema e isso cria uma autoria visual em música muito forte. Esse foi o atractivo básico e fundamental”. Há convidados como a cantora Adriana Calcanhotto na acoplagem de “Bem querer” e “Futuros amantes”; Celso Fonseca, violão e guitarra em “A mais bonita”; Pedro Jóia, violão e alaúde árabe, em “Acalanto para Helena” e os violoncellos de Jaques Morelenbaum na versão confidente de Eugénia para a recorrente “Roda viva”. Ah, sim ,e Chico Buarque, o próprio, no dueto dissonante de abertura, na corrosiva “Bom conselho” (“inútil dormir/ que a dor não passa”) e mais adiante, na não menos farpada “Injuriado” (“Se eu só lhe fizesse o bem/ talvez fosse um vício a mais/ você me teria desprezo por fim”). Não foram os dois únicos encontros das duas vozes. “Em ‘Olé olá’, eu sempre imaginei aquela música singela em leitura falada, como um quase rap. O Chico gravou comigo em rap, mas no final pediu para não incluir no disco. Era a primeira vez que ele tinha feito um quase rap, usou a idéia para a ‘Ode aos ratos’, no seu disco seguinte. Mas, ele autorizou a versão cantada e falada para o YouTube. Eu reabri a sessão e gravei o rap sozinha no disco”.
Como indica o título, o duplo promove uma desconstrução programada da obra de Chico, incluindo uma releitura brutalista e eletrônica da estrutural “Construção”. “As idéias para cada música fui eu que desenvolvi. O Eduardo Queiroz lia minhas explicações e realizava os arranjos”. Nem mesmo a bucólica e marcial “A banda” escapou da irreverência com superposição de vozes e uma intromissão da gravação original do autor, de 1966, quando a música foi uma das vencedoras do Festival da TV Record daquele ano. “Foi um sampler, como uma memória, afinal, tudo com o Brasil para mim, começou com ‘A banda’, tinha eu uns seis anos de idade, e mudou minha vida para sempre. Direcionou-me para isso aqui...”.
Nova guinada estética e desabrochou “POPORTUGAL”, mais um gravado em São Paulo, entre março e abril de 2007, produção de Eugénia, dividida com Eduardo Queiroz, também responsável por arranjos, direcção musical, guitarra, teclados, piano, samplers, percussão, loops. “Esse universo pop em Portugal é muito forte, muito rico e bom. Tive vontade de cantar algumas músicas emblemáticas do pop português, quase todas dos anos 80 e 90. E o Eduardo nunca tinha ouvido nada. Para ele, não tinha gravidade nenhuma remexer nesse repertório considerado sagrado em Portugal”, assevera. “Foi divertido, eu sabia que estava a mexer num vespeiro. Os músicos em Portugal raramente são desapegados das suas versões originais, e foi tipo uma ousadia que me saiu cara, mas eu adorei”. Sem um pingo de reverência, circulam temas de Sergio Godinho, “O sopro do coração”, com Helder Gonçalves (lançada pelo grupo Clã, em 2000) e Pedro Abrunhosa (“Se eu fosse um dia o teu olhar”, gravação do próprio, de 1995) a Pedro Ayres Magalhães (“Amor”, com Heróis do Mar, “Sonho azul”, por Né Ladeiras, ambos de 1984) e Tozé Brito (“Se quiseres ouvir cantar”, lançada por ele, em 1972, e “”Eu sou”, com Pedro Brito, pela banda Doce, em 1981). Foto de Bene Porto.Arte de Paulo Oliveira.
O duplo “30 ANOS, CANTA, CANTA MAIS, de 2012, com 33 faixas, recapitula a trajetória da cantora, mas também abre a ela novos rumos. “Essa compilação é importante para deixar registradas uma época e uma opção. Acho essa coisa de colectanea meio chata, sempre procuro acrescentar algo de novo. Foi importante registrar quase todos os duetos que fiz, também músicas que gostei de gravar sozinha. Me obrigou a rever o meu trabalho, coisa eu não tenho vontade de fazer. Gosto do novo, o que ainda não fiz. Não fico ouvindo meus discos...nem fazendo muitas análises. Faço como acredito na hora e depois sigo em frente”. Do emotivo encontro com Tom Jobim na faixa título, já descrito, aos dois com seu filho, Paulo Jobim (violão, viola) em “Estrelaria” e “A luz do meu caminho”, ambas parcerias dele com Ronaldo Bastos, à revisita da pepita recôndita “Two kites”, composta em inglês, que escalou o hit parade americano na voz do autor. “Adoro essa música e tem pouquíssimas versões dela, com arranjo original do próprio Tom Jobim”. Outro pilar da bossa, Carlos Lyra, divide com ela “Amarga vinha”, composição dele, que gravaram em 1995. “Foi um convite para participar de seu disco ‘Carioca de algema’. Não sou fadista, mas dei o meu melhor”. Pescado no disco “Lisboa dentro de mim”, “Ulisses”, poema de Fernando Pessoa, musicado pelo pianista luso Mario Laginha também foi escalado. “É um sonho, o Mario é absolutamente genial e fez essa obra prima. Ele foi meu diretor musical por três anos, fizemos muitos shows, mas, infelizmente as gravações não tinham qualidade suficiente para serem lançadas”. Outro poema incluído, é “Cantar”, de Antonio Botto. “Pedi ao Wagner Tiso para musicar este grande poeta português. Ficou lindo com ele e o Pedro Caldeira Cabral, um gênio da guitarra portuguesa”.
Também entram na compilação, duetos com Caetano Veloso (“Olhos castanhos”), Chico Buarque (“Bom conselho”), Milton Nascimento (“Amor é cego e vê”), Ney Matogrosso (“Foi Deus”), a supra citada montagem póstuma com Gonzaguinha (“Surpresas”), e mais encontros com as cantoras Gal Costa (“Quando a tua boca beijo”), Simone (“Caminho errado”) e Adriana Calcanhotto (“Bem querer/ Futuros amantes”). Paulo Moura sopra seu clarinete melífluo em “Medo de amar”, do disco em homenagem a Vinicius de Moraes. “Ter o Paulo Moura como convidado é um privilégio total. Um grande acerto atemporal”.
E depois do Rio e São Paulo, Eugénia transfere-se temporariamente para uma terceira capital brasileira, Belo Horizonte. Lá, grava “UM GOSTO DE SOL”, em 2011, um mergulho nas entranhas do Clube da Esquina mineiro. Uma travessia telúrica:
- “Minas e Portugal tem imenso em comum. Na sua maneira de ser, no seu comportamento social, fechado mas inovador, calado, mas alegre e louco, enfim uma identificação muito forte.
A produção do disco foi de Robertinho (sobrinho do letrista Fernando) Brant, também autor dos arranjos. “Foi super importante, ele é um perfeccionista alucinado e meticuloso. Sabe o que quer, analisa possibilidades, leva os artistas à loucura, mas o resultado é transformador. Para mim como cantora, um retorno ao desconhecido. Tive de reaprender a colocar a voz. Foi um desafio muito forte e, claro que eu estava disposta a passar por isso, o que nem sempre acontece”.
Megaclássicos do Clube, como “Cais”, “Um gosto de sol” (ambos de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), “Sol de primavera” (Beto Guedes e Bastos), entoados por uma Eugénia à flor da pele, desfilam ao lado de canções igualmente densas e menos difundidas como “Tarde” (Milton e Marcio Borges), “Fruta boa” (Milton e Fernando Brant) e “Luz e mistério”, rara associação de Beto Guedes e Caetano Veloso. Portugal e Minas entrelaçam-se na inclusão de um excerto de “A hora absurda” de Fernando Pessoa (numa coda de “Cais”) e o poema do lusitano “Vaga no azul”, musicado por Milton, que participa da faixa. “Regravação desta música que registrei em 1986, mas que eu errei as notas e agora, finalmente, com a ajuda do Milton as notas estão certas”. A própria Eugénia imprime a digital luso-mineira a suas parcerias com Wagner Tiso, que participa ao piano, em “O cerco” (“um lado meu erra o alvo/ um lado meu erra o salto/ um lado meu fica ao alto/ outra metade está solta”) e Toninho Horta, faixa que destaca, “um momento maravilhoso”. Ele é o titular do violão e dueto vocal, na valsa dissonante “Fogo de palha”: “meu coração nunca acerta/ meu coração nunca falha/pára/ e no lugar que a dor aperta/ arde um fogo eternamente”. capa do artista plástico Rodrigo Guimarães.
Em ambiente familiar, “CONVERSAS COM VERSOS”, não por acaso é estrelado por Géninha Melo e Castro, apelido em criança da cantora. Ela vadeia o universo onírico de sua mãe, Maria Alberta Menéres, neste disco singular, ilustrado por desenhos de sua filha, Mariana Melo. “A minha mãe é talvez a mais importante escritora infantil e juvenil de Portugal. Este disco é baseado em seu primeiro livro de poesia infantil, do mesmo nome, ‘Conversas com versos’”. Produzido e gravado no estúdio Anima, de São Paulo, por Eduardo Queiroz, em 2013, ele traz as letras do livro musicadas por ele, o violonista Camilo Carrara, o percussionista Nath Calan, que formam a base instrumental, e a própria Eugénia. “O tratamento musical está absolutamente em harmonia com a poesia, um casamento muito feliz. É muito difícil fazer músicas infantis boas, ao contrário do que se pensa. É um sucesso, e em Portugal está lançado em conjunto com o próprio livro, com partituras e edição especial. Um belo projecto apoiado também pela Fundação Gulbenkian”. Desfilam em clima entre onírico e didático “A árvore” (“Qual é a coisa, qual é ela/ que se prende à terra por sua raiz/ de si própria cresce/ e em casca se embrulha?”), “Os nomes” (“Porque eu me chamo coelho/ e não me chamo melão?/porque eu me chamo lagartixa/ e não me chamo cão?”) e “As pedras” (“as pedras falam/ só entende quem quer/ todas as coisas tem alguma coisa para dizer”). Eugénia ainda brilha em três duetos, no samba estilizado “O meu chapéu/ Consulta”, ao lado de Ney Matogrosso, no rap orientalista “O nariz”, e “Nomes”, ambas com Lino Krizz. capa e ilustrações de Mariana Melo.
Se no anterior, Eugénia abordou a obra da mãe, “MAR VIRTUAL”, gravado no Estúdio Arsis , em São Paulo, entre setembro e outubro de 2017, é um encontro de contas com as artes vanguardistas do pai, o engenheiro têxtil, ensaísta, poeta e artista plástico que se assina E.M de Melo e Castro. Seu livro “Ideograma”, de 1962 é considerado o marco fundador da poesia concreta e do experimentalismo em Portugal. “Este é um trabalho difícil que eu me arrisquei a fazer, com alguns poemas experimentais do meu pai. O pianista Emilio Mendonça eu conheço, e com ele trabalho desde o disco ‘Paz’. Foi o parceiro ideal, um compositor que entendeu e superou o difícil recado que lhe dei.”. Emilio e Eugénia confeccionaram as músicas dos poemas, com exceção de “Velho” (“tu que serves és servido comes/ tu que comes és comido cavas/ tu que cavas és cavado morres”), de Ana Deus e Alexandre Soares e “Das duplas figuras”, de Gilberto Assis. “Recriamos ‘Um homem que canta vê’ e ‘É de manhã’, músicas de Mario Laginha para os poemas de meu pai. A seleção foi muito difícil e nada óbvia”.
Concentrado em voz e piano, o disco surpreende pela amplidão de possibilidades deste aparente minimalismo. Como a de fazer porejar música da enumeração do “Soneto soma 14 X” (“14342 / 23306/ 41612”). Ou redimensionar a litania de “Paisagem” (“se todas estas árvores são árvores/ aquelas árvores são árvores também/ mas eu não sei se as árvores são só árvores/ ou se as árvores são pedras também”). Pictórica, “Sintaxe das misturas” (“vermelho amarelo e/ azul vermelho/ vermelho azul e/amarelo vermelho”) concatena ambiências visual e sonora. Nos tilintares de “Vidro”, o desafio de trilhar uma letra espelhada, como sugere a matéria prima do título. Jogo de vozes ecoantes retinem “Das duplas figuras” (“faço isso tudo/ como se fosse entrudo/ ando pra frente/ no meio da gente/ fico na mesma/ a olhar pra lesma”). A valsa intervalada e dissonante “Relações perigosas” confeita enumeração de outra natureza: “Pai mãe filha filho avô avó tio avô avó/ avo tia tio tia-avó/ sobrinho primo prima irmã/ cunhada pai mãe esposa neto neta filho”. De “Chama” (“em cada nome o meio pelo nome/ que o nome no nome se incendeia”) participa o homenageado, em diálogo com o canto da filha. A própria Eugénia destaca “Caminho para o mar”, faixa de abertura, que, de certa forma, emblematiza as artes desta circunavegadora afeita a oceanos. “Fico olhando sem medo/ o cruzeiro do sul/ nesta estrela polar/ fecho as ondas que pus/ no mar de ser assim”. capa e projeto gráfico de Alexandre Amaral / Selo Sesc.
Tendo transitado por tantas vertentes ao longo de uma carreira que não se fecha em rótulos nem pode ser aprisionada por estereótipos, Eugénia descarta situar-se esteticamente num porto seguro. “Isso seria tentar definir o impossível, embora, se eu for obrigada a refletir, vejo um percurso cheio de direções, nem sempre paralelas, mas sempre em continuidade. Desafios e imperfeições naturais de quem tem muitas idéias na cabeça, mas tem de as organizar e tem de as realizar. E muito foco, nem que seja para depois desfocar”.
TARIK DE SOUZA , Rio de Janeiro, 2022
FOTO neste post - VÂNIA TOLEDO
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2021 - SWEET PSYCHEDELICS , Banda em que Eugénia participa apenas como cantora, o primeiro disco com o mesmo nome SWEET PSYCHEDELICS, produzido por Robertinho Brant e gravado em Belo Horizonte. Musicas e violão de Robertinho Brant, Letras e vocais de Marcelo Sarkis, Bateria de Rike Frainer, Guitarra, teclados, vocais e co produção de Thiakov Davidovich.
Lançamento Sony Music Enterteinment / World 2021. Desing e capa de Humberto Mundim.
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